Joe Biden quer iniciar nova era na política econômica

Fazem parte dos planos que somam US$ 3 trilhões o fortalecimento do poder de barganha do trabalho e a valorização da economia dos cuidados: atenção à saúde, à infância e aos idosos

Por Diego Viana — Para o Valor, de São Paulo – Acesse a matéria completa aqui

A ousadia dos planos econômicos de Joe Biden surpreendeu adversários e aliados. Considerado um membro da ala mais moderada do Partido Democrata, Biden propôs três grandes projetos que, somados, atingem US$ 6 trilhões. A magnitude do projeto provocou temores de retorno da inflação e má alocação de recursos, mas o presidente dos EUA já declarou em mais de uma ocasião que está disposto a errar pelo excesso, não pela falta.

Embora expresse um volume de investimentos que não se via desde a Guerra Fria, o impacto da chamada Bidenomics vai além dos gastos com infraestrutura, energia e formação da mão de obra. Fazem parte dos planos o fortalecimento do poder de barganha do trabalho e a valorização da economia dos cuidados: atenção à saúde, à infância e aos idosos.

Influenciado pela popularidade, sobretudo entre jovens, da ala esquerda do Partido Democrata, Biden se propõe a inaugurar uma nova era na história econômica americana.

Em abril do ano passado, ainda pré-candidato à presidência, Biden declarou que “já não é mais Milton Friedman quem dá as cartas”. O democrata se referia à forte influência que o economista liberal, ferrenho opositor de gastos sociais, exerce, desde fins da década de 1970, na política americana e na produção acadêmica em economia. No entanto, o que que não foi respondido naquele momento é quem dá as cartas que já não cabem a Friedman.

John Maynard Keynes. Foto: AP

O baralho dos elementos que constituem esse carteado econômico tem naipes de diferentes origens. Por um lado, toma emprestado referências do New Deal da década de 1930 e do capitalismo administrado do pós-guerra. Por outro, alimenta-se de problemas emergentes, como clima, desigualdade e a economia do cuidado. O contexto histórico das propostas também  é inédito, resultado da combinação de crise climática, concorrência pela hegemonia geopolítica e transformação demográfica.

O comentarista econômico Noah Smith, da Bloomberg, escreve que “todo novo presidente chega com uma lista de iniciativas, mas a cada três ou quatro décadas um deles traz uma filosofia nova. O teor, ritmo e escopo do plano de Biden sugerem que estamos entrando em um novo paradigma, como com Franklin Roosevelt, em 1933, e Ronald Reagan, em 1981”.

Os dois presidentes citados traduzem as mais radicais transformações da política econômica americana no último século. O nome de Roosevelt, que assumiu em plena Grande Depressão, ficaria ligado ao capitalismo regulado, inspirando a era conhecida como fordista-keynesiana.

O papel de John Maynard Keynes na configuração dessa era foi mostrar que é possível à economia encontrar equilíbrios que não coincidem com o pleno emprego; então, em momentos de crise, a intervenção do governo pode manter a máquina em movimento. Já Reagan, que se tornou presidente após uma década de inflação alta e crescimento pífio, representa a volta do liberalismo ao poder, cortando gastos sociais e promovendo a autorregulação do mercado. O economista que simboliza essa virada é aquele que, segundo Biden, não dá mais as cartas: Milton Friedman

Milton Friedman. Foto: Tim Leedy/Getty Images

Biden “sempre foi visto como um moderado, mas também era reconhecido como um democrata herdeiro do New Deal”, argumenta a cientista política e socióloga Margaret Weir, da Universidade Brown. Para Weir, um governo federal com papel forte, que cobra impostos e gasta, é referência que o presidente americano tem na memória. “Ironicamente, sua idade [78 anos] talvez faça dele alguém mais simpático à abordagem em que ‘se há um problema, o governo federal pode ajudar a resolvê-lo’.”

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Com o título geral de “Reconstruir Melhor” (Build Back Better), o projeto econômico de Biden se divide em dois: o “plano de empregos” (American Jobs Plan) e o “plano das famílias” (American Families Act), além do programa já instituído de recuperação da pandemia, o “American Rescue Plan”, que somou US$ 1,9 trilhão.

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Um dos maiores críticos da Bidenomics é um ex-assessor de presidentes democratas: o economista Nouriel Roubini, professor da Universidade de Nova York, que foi membro do Conselho de Assessores Econômicos de Clinton e conselheiro de Timothy Geithner quando este era secretário do Tesouro sob Obama. Para Roubini, o projeto do atual mandatário é “neopopulista” e “não muito diferente da doutrina econômica de Trump”.

Roubini compara Trump e Biden aos presidentes anteriores: Obama, Clinton e o republicano George W. Bush, que favoreciam a liberalização comercial, a independência do Federal Reserve (Fed, o banco central), o dólar forte e a austeridade.

“Eram políticas neoliberais, com a desregulação de bens e serviços que favoreceu a formação dos atuais oligopólios em setores como o corporativo, tecnológico e financeiro”, resume. Trump promoveu o retorno ao protecionismo, tentando atrair empregos industriais perdidos na última década, e Biden manteve os esforços de renacionalização, incluindo exigências de compras públicas locais mais rigorosas do que as do antecessor.

“Não se pode dizer que Biden formalmente seguiu Trump na exigência de um dólar mais fraco, nem intimidou o Fed a financiar os déficits crescentes, mas seu governo está tomando medidas que vão exigir uma cooperação maior do Fed”, aponta Roubini. “De fato, os EUA entraram em um estado de monetização constante da dívida, embora não oficialmente. Essa política começou com Trump.”

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Muitas análises que buscam explicar a perda de influência de Friedman insistem em pontos que vão além da doutrina econômica. Na década de 1960, quando ainda era uma figura pouco presente no debate público, o economista foi alçado à condição de porta-voz informal de movimentos contrários aos direitos civis, relata o jornalista Zachary Carter. Na época avançavam as leis que obrigavam escolas públicas a integrar estudantes brancos e negros, bem como outras leis projetadas para combater a segregação racial.

A emergência de novos conflitos e pressões sociais, sobretudo centradas em raça e gênero, indicam que a neutralidade que Friedman pregava deixou de ser possível. A ideia de que os governos não devem buscar corrigir as causas da desigualdade perdeu espaço na última década, que marcou o retorno do ativismo social, com movimentos reivindicatórios tomando as ruas de diversas cidades americanas.

A demografia também influi na transformação do ambiente político. Em agosto, o censo dos EUA mostrou que a estrutura demográfica está mudando mais rápido do que o esperado, com 40% da população se identificando como não branca. Há 30 anos, os brancos eram mais de 80%.

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Os quatro pontos que Wong menciona como reveladores da mudança de ares coincidem com áreas em que os planos de Biden são agressivos.

O primeiro é a diferença de remuneração entre capital e trabalho, tema central do best-seller de Piketty: a solução para a tendência a retornos maiores para o capital é o aumento da taxação e um sistema tributário mais progressivo. O segundo ponto é a concentração de poder nas mãos das corporações. A solução proposta é fortalecer a legislação antitruste. Em seguida, Wong cita o enfraquecimento dos sindicatos, que reduziu a proporção da renda que vai para os salários. Uma terceira influência vem dos economistas heterodoxos reunidos na doutrina conhecida como Teoria Monetária Moderna (Modern Money Theory, ou MMT), com o mais ambicioso projeto da ala esquerda do Partido Democrata, o Green New Deal.

Para Brown, os princípios e o modo de gestão do neoliberalismo ainda estão profundamente arraigados nas instituições e na cultura americana. “Das escolas às entidades sem fins lucrativos, da mídia às carreiras, tudo é organizado segundo esses princípios. A direita, por sinal, não abandonou seus compromissos com o Estado pequeno e a oposição à provisão de bem-estar. O neoliberalismo mudou e está sendo desafiado nos EUA, mas certamente não pode ser dado por morto”, diz.

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