Esta nova edição dos “Vinte e cinco anos de economia brasileira” tem várias lacunas e algumas novidades. A pandemia provocou atrasos na publicação de dados relativos a 2020 e, em outros casos, a descontinuidade da informação sobre algumas variáveis, bem como a introdução de mudanças metodológicas não previstas, dificultaram bastante, quando não impediram, a atualização de algumas das séries que compõe o trabalho.
Apesar disso e como parte do esforço de ampliar sua cobertura foram introduzidos também novos indicadores, especialmente em relação à posição do Brasil na economia mundial, a aspectos setoriais da dinâmica industrial e a itens específicos do desenvolvimento educacional e tecnológico. Nem sempre foi possível obter dados atuais para esses indicadores nem para outros, relativos à área social, presentes em edições anteriores. Mas optou-se por manter a publicação das séries na esperança que, superada a atual fase de crise sanitária e social e de desmonte do aparato de Estado, possa-se recuperar a transparência e fidedignidade das informações sobre a nossa evolução econômica e social.
O biênio 2019/2020 foi marcado por uma combinação sem precedentes de dois macroprocessos. Pela primeira vez em nossa história republicana a extrema direita chegou ao poder pela via eleitoral. Não se trata de um governo meramente conservador como tantos que povoaram nossa história, mas sim de um movimento extrapartidário e personalista que, além do fundamentalismo de mercado herdado de etapas precedentes, combina uma visão retrógrada do mundo e da sociedade com um descompromisso explícito com as instituições democráticas e com as práticas civilizadas de convivência social. Agregue-se a isso o posicionamento geopolítico em 2019, que submeteu o Brasil aos interesses da extrema direita norteamericana encarnada pelo “trumpismo”, e o abandono dos princípios e padrões que nortearam nossa diplomacia e nossa participação nos fóruns internacionais, com a consequente degradação do protagonismo e da imagem do País e seu crescente isolamento no cenário mundial.
À margem dos impactos da pandemia, esse movimento tem uma característica notável: o processo sistemático de destruição de avanços econômicos, sociais, institucionais e civilizatórios importantes, embora insuficientes, obtidos de forma intermitente ao longo das últimas décadas, que contribuíram ao esforço de consolidação da democracia brasileira. A julgar pelas manifestações públicas das autoridades superiores e representantes do Governo, esse movimento regressivo tem, aparentemente, o propósito de implantar um novo ordenamento social e institucional baseado em um duplo totalitarismo: o do mercado, provavelmente com nuances populistas, e o político, unipessoal e tendencialmente dinástico. É difícil imaginar como isso poderia contribuir à solução dos problemas fundamentais do País – a desigualdade social, o desemprego estrutural, o atraso tecnológico, as carências em serviços sociais básicos como saúde e educação, para citar os mais evidentes – pari passu à reversão dos efeitos negativos da pandemia.
As condições prevalecentes em 2019 – lento crescimento da economia, desemprego elevado, contração da renda dos trabalhadores, aumento da pobreza e da desigualdade, degradação e internacionalização da base de recursos naturais – já eram difíceis. A eclosão e disseminação à escala planetária do novo corona vírus, o segundo macroprocesso que caracteriza o biênio, trouxe novos ingredientes à desconstrução econômica e social do País, afetando, principalmente, os trabalhadores, os pequenos produtores e os segmentos mais vulneráveis da população. O modus operandi do governo federal, engessado pelo negacionismo e pela centralidade da reeleição e da luta ideológica no seu modelo de gestão, funcionou, na prática, como um multiplicador dos impactos sanitários e sociais da pandemia. A falta de comando e de uma estratégia nacional de enfrentamento da crise, a recusa em optar oportunamente pela vacinação em massa da população e adotar as medidas de isolamento social indispensáveis, as demonstrações explícitas de descaso pelos efeitos da pandemia potencializaram a tragédia que vivemos hoje – ainda não conclusa – com quase 500.000 mortos, uma parte expressiva dos quais poderia ter sido evitada se outros critérios e outras políticas, como aconteceu em vários países, tivessem sido adotadas.
Consequência da convergência desses fatores, o PIB diminuiu em 2020, menos 4,1%, a indústria de transformação recuou em 4,6%, o desemprego e subutilização da força de trabalho atingiram níveis recordes, milhares de pequenas e médias empresas, especialmente no setor de serviços, foram destruídas e o flagelo da fome, agravado pela alta expressiva dos preços dos alimentos, voltou a golpear milhões de famílias brasileiras. Note-se que esses impactos também poderiam ter sido atenuados com medidas preventivas implementadas oportunamente, o que não ocorreu por uma combinação de incompetência e descaso das autoridades responsáveis. Entre as mais óbvias se pode citar a reativação de obras públicas, a agilidade na expansão do financiamento de emergência às empresas, o estabelecimento de uma renda de emergência em um patamar compatível com as necessidades sobrevivência das famílias afetadas, a formação de estoques reguladores e sistemas diretos ou cooperativos de abastecimento alimentar, o estímulo a utilização da capacidade produtiva ociosa nas empresas.
O quadro atual é complexo e as perspectivas do pós-pandemia são sombrias. Não existem soluções simples. Mas a experiência desse período deixa algumas advertências para o futuro. Não é aparelhando as instituições do Estado com critério ideológico e em função de relações de apadrinhamento e de acomodação de interesses fisiológicos que se enfrenta uma crise sanitária e social das dimensões da que estamos vivendo. Não é com soluções mágicas sem amparo científico que iremos controlar a disseminação e a letalidade do vírus. Não é com um modelo econômico que engessa o crescimento e produz exclusão social e pobreza que iremos recuperar a economia e melhorar as condições de vida e de trabalho da população. Não é cortando recursos da ciência e das universidades públicas que vamos ciar condições para a reversão de nosso crônico atraso tecnológico e resolver os problemas de produtividade e competitividade que afetam nossa indústria. Não é destruindo a capacidade operacional e financeira do Estado que vamos reverter os processos de degradação social e ambiental atualmente em curso.
Abordar esses problemas desde a ótica do desenvolvimento implica mudanças substantivas na natureza, intensidade e orientação das ações e políticas do Estado Brasileiro. Como avançar nessa direção? Talvez a reflexão abaixo, do mestre Celso Furtado, que já reproduzimos em edição anterior deste trabalho possa, pela sua atualidade, nos dar algumas pistas a esse respeito:
“No curso da história as ciências tem evoluído graças àqueles indivíduos que, em dado momento, foram
(In “Metamorfoses do Capitalismo” – Discurso por ocasião do recebimento do título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio
capazes de pensar por conta própria e ultrapassar certos limites. Com a Economia – ciência que deve visar
primordialmente o bem-estar dos seres humanos – não é diferente. Ela requer dos que a elegeram
imaginação e coragem para se arriscar por caminhos por vezes incertos. Para isso, não basta se munir de
instrumentos eficazes. Há que se atuar de forma consistente no plano político, assumir a responsabilidade
de interferir no processo histórico, orientar-se por compromissos éticos.”
de Janeiro, em dezembro de 2002).
Gerson Gomes
Brasília, maio de 2021