O anacrônico debate Brasileiro: a autonomia do BC e o novo marco legal do mercado de câmbio

Edifício-Sede do BCBC em Brasília. Foto: Rodrigo Oliveira/Caixa Econômica Federal.

Por Ezequiel Greco Laplane

O dia 10 de fevereiro foram aprovados, na Câmara de Deputados, o Projeto de Lei Complementar PLP 19/2019 relativo à autonomia do Banco Central (BC), e o Projeto de Lei 5387/2019 que legisla sobre o marco regulatório do mercado de câmbio. Ambos projetos implicam uma mudança qualitativa na gestão e regulação do mercado financeiro local. Ambos projetos são totalmente anacrônicos em relação aos debates atuais que, ancorados em categóricas evidencias, superaram essas propostas que tem se mostrado perniciosas para o crescimento e a redução da desigualdade.

O PLP 19/2019, de autoria do senador Plínio Valério (PSDB – AM) e já aprovado pelo Congresso Nacional, confere “autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira ao BC para que ele execute suas atividades sem sofrer pressões político-partidárias”. Na prática, ao estabelecer novas regras para os mandatos do presidente e dos diretores da autoridade monetária, o Poder Executivo – com seu projeto eleito democraticamente nas urnas – deixa de ter ingerência direta na condução da instituição. O presidente do BC escolhido pelo presidente da República começará seu mandato no terceiro ano da gestão deste, enquanto que haverá um escalonamento para o início do mandato dos diretores, evitando a construção de possíveis maiorias.

Autonomia, a princípio, não é independência. No entanto, os moldes do projeto e a estrutura burocrática e institucional resultante se sustentam nas mesmas premissas: dotar de competências “puramente técnicas” a condução do BC separando-o do ciclo da política institucional. Sendo o anelo revelado a independência do BC, cabe lembrar que em política não existe espaço vazio, e perguntar, como já o fizera Maria da Conceição Tavares, “um Banco Central independente… de quem?”.

Entretanto, diversos trabalhos refutam as esperadas virtudes dessa dita independência e sua contribuição no desenvolvimento econômico. O último artigo de repercussão nessa línea foi elaborado pelo Banco Mundial, instituição que não pode ser acusada de ser bastião do pensamento heterodoxo. Os autores do estudo destacam três mecanismos pelos quais a independência da autoridade monetária tem ampliado a desigualdade: pelo constrangimento da política fiscal e consequente menor capacidade de estabelecer políticas de redistribuição de renda; pelo incentivo a desregular os mercados financeiros que elevam o preço dos ativos financeiros – detidos por pessoas e corporações mais abastadas –; pela promoção de políticas que diminuem o poder de barganha dos trabalhadores. A conclusão é contundente: “o BC independente apresenta restrições substantivas aos formuladores de políticas para orientar os resultados macroeconômicos gerais, responder a choques adversos e impactar os resultados distributivos” (Aklin et al, 2021, p 22 – tradução nossa).

Banco Central do Brasil / Brasília

Já o PL 5837/2019, do Poder Executivo e enviado ao Senado Federal, dispõe sobre o mercado de câmbio brasileiro, o capital brasileiro no exterior e o capital brasileiro no País. Sob o pretexto de reduzir custos de transação e de facilitar a internacionalização da moeda doméstica em transações globais, o projeto redunda em propostas que visam a liberalização e abertura do mercado de câmbio, adotando medidas há muito tempo almejadas pelos grandes investidores institucionais.

Essas medidas não são mudanças marginais nem parcimoniosas. Pelo contrário, são profundas, abrangentes e agressivas na imposição de um novo perfil nas relações monetárias. Entre outras, destacam-se: o fomento à criação de ativos externos por parte das instituições financeiras; a menor – nula – transparência sobre o envio de remessas ao exterior; a revogação de impostos suplementares e a permissão de bancos estrangeiros controlar, via compra de ações, bancos nacionais; habilitar operações cambiais até agora consideradas ilegais por envolverem possíveis manipulações cambiais; a apertura de contas em divisa e maior facilidade para transações locais em moedas estrangeiras.

O projeto prevê, também, que várias atribuições do Conselho Monetário Nacional (CMN), como a regulação de operações de câmbio, de contratos futuros e a organização e fiscalização de diversos agentes que operam nesses mercados, passem para o BC. Dessa forma, ao socavar as competências do CMN, órgão superior do Sistema Financeiro Nacional, em prol de fortalecer a gestão do BC autônomo, parece difícil sustentar o argumento dos defensores do PLP 19/2019 sobre a inabalável submissão da autoridade monetária aos projetos democráticos.

Com particular intensidade na década dos anos 1990, a liberalização e a abertura dos mercados foram estimuladas pelos países centrais, organizações multilaterais e outros players globais, favorecendo a interconexão dos balanços que deu forma à globalização financeira. Não obstante, o aumento das crises financeiras desde finais dessa década – entre as quais o Brasil carrega amargas lembranças – forçaram a revisão dessas premissas. Inclusive o Fundo Monetário Internacional (FMI), outrora paladino da desregulamentação, tem reconhecido a pro ciclicidade dos fluxos de capitais, a concentração dos riscos e a importância do uso de controles de capitais (e.g. Ostry et al, 2010; FMI, 2011; Gosh et al, 2017). O atraso da discussão nestas latitudes é grande.

Os dois projetos de lei fazem parte de uma visão de país que afasta o poder decisório e as instituições nacionais, de suas necessidades concretas para a superação dos entraves estruturais e a construção de um desenvolvimento inclusivo e igualitário. No caso, as ações promovidas são uma afronta à soberania monetária ao atrelar, ainda mais e de forma subordinada, as relações monetárias ao ciclo internacional e ao humor dos “money managers” globais.

A dolarização da economia está na volta da esquina. A fragilidade financeira, também.

AKLIN, M.; KERN, A. NEGRE, M. (2021) Does Central Bank Independence Increase Inequality?. Wolrd Bank Group. Policy Research WP 9522. Em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/35069

FUNDO MONETARIO INTERNACIONAL (2011). Recent Experiences in Managing Capital Inflows—Cross-Cutting Themes and Possible Policy Framework. IMF Staff position note, 2011.

GHOSH, A.R.; OSTRY, J.D.; QURESHI, M. (2017) Managing the Tide: How Do Emerging Markets Respond to Capital Flows?. IMF Working Papers 17/69. Washington: International Monetary Fund)

OSTRY, J.; GHOSH, A.; HABERMEIER, K.; CHAMON, M.; QURESHI, M.; REINHARDT, D.B.S. (2010). Capital Inflows: the role of controls. IMF Staff Position Note. SPN/10/04 Feb.