O Peso Argentino: breve nota sobre a inflação

ECONOMIA INTERNACIONAL / MACROECONOMIA ABERTA

Por Ezequiel Greco Laplane

Na Argentina, a retomada da inflação e sua aceleração mais recente, desperta interesse e preocupação no conjunto da sociedade. Portanto, é natural que sejam conduzidos, em diferentes esferas, esforços de reflexão sobre as suas origens ou sobre suas consequências para o sistema econômico e social. Porém, na tentativa de desvendar as forças que comandam o contínuo aumento dos preços internos em moeda nacional, as análises simplificam um fenômeno complexo e multicausal.

Abordados a partir de diferentes perspectivas e vieses ideológicos, os principais eixos de atenção são: o poder das empresas em um mercado oligopólico; as consequências da emissão monetária; o fator inercial dos contratos e o papel das expectativas; o conflito distributivo entre capital e trabalho; o impacto das variações da taxa de câmbio; fatores exógenos como guerras e/ou eventos climáticos. Todos com maior ou menor grau de aderência à realidade do pais.

Na prática, as iniciativas para conter o avanço da inflação foram tão variadas quanto as interpretações de suas causas subjacentes. Entretanto, focando só nos últimos três períodos presidenciais, observam-se duas grandes abordagens. Uma delas entendia que, em linhas gerais, as causas da inflação seriam resolvidas quando eliminadas as amarras e distorções provocadas pela intervenção do Estado. A outra, mais sofisticada na sua análise, enxerga a raiz da dinâmica inflacionária nos desbalanços monetários e nos problemas de uma estrutura produtiva heterogênea.

A primeira abordagem mencionada vigorou entre 2016 e 2019, momento no qual foi promovido um novo processo de liberalização e desregulação cambial, comercial e de preços administrados. O resultado em matéria inflacionária (assim como em outras frentes) foi um fracasso estrepitoso, acelerando a inflação anual em quase 100%.

Já a segunda abordagem teve dois momentos, entre 2012 e 2015, e no período atual (2021 – 2022). Embora cada uma das fases tenha tido seus matizes à luz da conjuntura, o espírito da interpretação geral moldou as principais medidas: acordos de preços com fiscalização cidadã, gestão das tarifas dos serviços públicos, preservação das reservas internacionais e contenção das desvalorizações cambiais, acordos salariais e transferência direta para repassar parte do imposto inflacionário, a fim de evitar perda do poder aquisitivo. A moderação da aceleração inflacionária observada no primeiro momento, não parece se repetir no segundo.

Enquanto a “mão invisível” do mercado e a “mão visível” do Estado travam uma queda de braço, a população fica espremida entre o desemprego (e o subemprego) e a redução do poder de compra das rendas.  A gestão imediata da inflação consome boa parte do tempo, do intelecto e dos recursos da gestão macroeconômica, e a coordenação de esforços para resolver os problemas estruturais subjacentes fica relegada, mas não deve ser esquecida.

Nesse sentido, destaca-se que, de fato, a Argentina é um país periférico de renda média com uma estrutura produtiva heterogênea, cujos setores mais produtivos, com maior capacidade de organizar mercados, realizar investimentos e gerar mais valor na formação e acumulação de renda e riqueza, representam uma parcela pequena do sistema, porém central no comando da dinâmica macroeconômica. Por sua vez, sua pauta exportadora é altamente concentrada em setores primários e de baixo conteúdo tecnológico. Já em questões monetárias e financeiras, o país sofre as consequências da soberania monetária parcial, resultado de seu padrão ‘bimonetário’, que atrofia os canais de transmissão das políticas econômicas, delimita os mercados financeiros domésticos e restringe a gestão dos recursos externos. Por fim, o orçamento público, limitado pelo grau de informalidade, é campo de batalha de setores públicos e privados, cuja disputa estressa os limites de um modelo do tipo ‘novo-desenvolvimentista’. Os desafios, que não se esgotam nos mencionados, não são triviais.  

Os setores com maior poder de acumulação seguem uma estratégia que não contribui para a diversificação da estrutura produtiva nem para obter ganhos de produtividade, que são caminhos para estabelecer um círculo virtuoso entre geração de emprego, renda e lucros. Em seu lugar, o tipo de acumulação baseado em investimento em ativos já existentes, por exemplo concessões de serviços públicos monopolizados, ou em ativos com pouco efeito multiplicador, como investimos em segmentos de distribuição de bens de consumo suntuários, com os lucros resultantes sendo dolarizados e transferidos ao exterior, condenam a economia à estagnação. Ainda mais, a volatilidade dos preços de commodities introduz elementos de instabilidade e vulnerabilidade a choques externos. O Estado, por sua vez, apesar de recorrentes esforços, não consegue estabelecer bases sólidas para o financiamento do gasto social e do investimento público.  Assim, não conta com instrumentos para induzir uma mudança de orientação do processo de acumulação do setor privado, muito menos para substitui-lo.

A inflação é a manifestação, e não a causa, de um conjunto de desequilíbrios macroeconômicos interligados – externo, fiscal e monetário –, cujo ecossistema de relações é historicamente construído, e excede a esfera econômica.  Na atualidade, as tensões acumuladas devido a esses desequilíbrios inviabilizam aventuras disruptivas da ordem econômica e social, como medidas de choque ou maiores rupturas do precário pacto político e social. Apesar do crescimento em 2021 e do provável crescimento em 2022, o resultado das contas públicas não oferece fôlego para mitigar eventuais consequências indesejadas de tais campanhas. A evolução dos preços internos em pesos argentinos tem efeitos disfuncionais importantes que devem ser atendidos. Porém, a superação dos entraves requer uma estratégia ampla e realista, tanto no escopo de medidas e setores envolvidos quanto no horizonte temporal, que permita recompor os circuitos econômicos de forma funcional a um modelo virtuoso de crescimento com inclusão social e responsabilidade ambiental. Depois de tantos ‘pactos’ acertados ao longo da história, o país precisa mesmo de um ‘pacto para o desenvolvimento’ que articule, em novas bases, o papel do Estado e do setor privado em um novo ciclo de acumulação de riqueza e distribuição de renda.

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